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quarta-feira, 20 de abril de 2022

Notas sobre um homem negro que corre na rua – como o olhar, a desconfiança e a repulsa machucam.

 Notas sobre um homem negro que corre na rua – como o olhar, a desconfiança e a repulsa machucam. 

André Luis Pereira 


Caminho e corro na rua. Desde sempre sou um caminhante. Já escrevi sobre isso aqui há alguns anos. Andar na rua deveria ser algo libertário, romper com as amarras do tempo, do espaço físico de um automóvel ou de qualquer meio de transporte, encerrado em si mesmo. Após dois anos de pandemia tenho tentado retomar o andar na rua, correr de vez em quando, ainda que a trotes. Em Pelotas não existem espaços adequados à corrida de rua. Temos alguns trechos de avenidas ou mesmo a rua, com todos os riscos dela advindos. Tento correr por algumas avenidas da cidade que possuem espaços destinados a transeuntes. Mas me sinto incomodado, pois seja em que horário do dia ou da noite for há sempre a atitude de desconfiança das pessoas. Dia desses, sociólogo que sou ou me pretendo ser, passei a contar o número de pessoas que, quando da minha passagem, tocam seu corpo, seus bolsos, seguram mais firme seus celulares, cochicham com companheiros e companheiras, numa espécie de alerta, de aviso de cuidado. Para uma pessoa negra a suspeição é um amálgama, incrustado na pele, inscrito na tez, tatuado em nossa fronte. Ontem, enquanto corria, me peguei pensando sobre isso e segui analisando a atitude das pessoas. Então passei a me questionar: o que leva a essa atitude preconceituosa? Será a minha barba “hirsuta e branca”? Serão as mais de vinte tatuagens? Será o que me resta de cabelo, desgrenhado pela calvície que se aproxima? Quem sabe os lábios grossos, a cara fechada e o passo batido? Será a roupa, ainda que eu me preocupe em vestir roupas que se aproximem dos praticantes de esporte de rua? Será o suporte de compressão para a panturrilha, que tem doído no pós-treino? Na verdade, creio que seja o somatório desse conjunto de características, aliado a essa verve racista, que opera nas ruas, no cotidiano das pessoas. Ser um homem negro, na dita meia idade – logo aí, se tudo correr bem, chego aos cinquenta anos – que possui um emprego e renda estáveis, que possui uma razoável formação acadêmica, que aprecia livros (bons de preferência), boas bebidas e comidas de qualidade, não me blinda dos olhares, do aperto na bolsa ou no bolso, das palavras e frases entre os dentes. Ser um homem negro, no sul do Brasil, no sul do sul de um dos países mais racistas do mundo, não permite ter esperanças. Por vezes comparo a vida, a atividade na rua, o andar de bicicleta ou simplesmente caminhar, por cá e por Porto Alegre, onde morei muitos anos. E lá, talvez eu seja tão pequeno e comum que me sinta só mais um. Ainda que saibamos que “Ancoradouro Triste”, para parafrasear um querido amigo, também pode ser tão racista, quanto qualquer cidade da “Europa” brasileira, lá a sensação de multidão mascara com mais efeito a percepção do racismo. Mas aqui, na Pampaláxia, os olhares não são mais velados, as pessoas perderam a vergonha e não têm mais nenhum constrangimento em agir e se expor de forma discriminatória. Escrevo tudo isso para dizer que se eu, sujeito negro, ciente da sua negritude e, portanto, com um repertório desenvolvido para lidar com tais situações sofro, choro, me deprimo, me irrito. Fico imaginando o que passa a juventude negra, principal vítima do racismo brasileiro. Como afirmar uma identidade, se o espelho sempre te avisa que tu és o suspeito? Como demonstrar uma identidade positiva, quando o segurança (também negro) no mercado, na loja de conveniências, na agência bancária, faz questão de demonstrar que as pessoas negras estão sob o seu crivo? A isso só é possível responder com resistência, militância, muito, mas muito estudo e com o desejo de construção de uma sociedade antirracista. Em dias tão nebulosos, como os que vivemos hoje, à população negra só cabe a condição de resistir. E ainda que a maioria de nós ainda não tenha consciência de sua condição de pessoas racializadas, nossa responsabilidade, desde sempre é, também, tomar a vanguarda deste processo de construção de uma consciência coletiva, autônoma, justa, engajada e disposta a construir uma sociedade, de fato, antirracista. Na qual eu, minhas filhas, suas filhas e filhos, possam simplesmente andar na rua, sem ter que, a cada dois ou três minutos, responder mentalmente “Eu não sou ladrão, não se preocupe, não vou lhe roubar”. Se por ventura você for uma pessoa branca e leu esse texto até aqui, obrigado, provavelmente você faz parte da solução, sigamos em luta e em frente. 

André Luis Pereira

Abril/2022

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